quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Romeu e Julieta, um amor improvável!



            Há muitos anos atrás, na divisa de Goiás com Minas, no interior do país, existia uma fazenda muito especial, os donos, seu Chico e Dona Benta, nem imaginavam o quanto àquela fazenda era especial.
            Seu Chico criava e cuidava com tanto carinho sua criação de vacas holandesas, aquelas que dão muito leite. E todas as manhãs ele as ordenhava, dava feno, tirava os carrapatos, lixava o casco e até colocava lacinhos coloridos em suas orelhas.
            Dona Benta amava a plantação de goiabas vermelhas, seu cuidado com elas era notável, ensacava as frutinhas no período certo, varria o pomar e colhia os frutos no ponto certo.
            A fazenda era muito grande, e Dona Benta e Seu Chico viviam e trabalhavam apenas ali. Seu Chico com seu leite, ele vendia uma parte e a outra fabricava queijos no mesmo galpão que Dona Benta fazia doce das goiabas. Depois de prontos os queijos e goiabadas ficavam nas estantes para adquirirem cor e consistência adequada.
            O que dona Benta e o senhor Chico não sabiam é que o galpão era encantado. Todos os dias quando os donos iam se deitar, lá por volta das vinte horas, os elementos daquele lugar ganhavam vida. Era uma festa só, queijo cantando, goiaba dançando, leite rindo, colheres passeando e rodopiando, porém às quatro horas, era uma correria só, porque todos perdiam a vida.
            E eram assim todas as noites, festa e correria pela manhã, ninguém poderia ser pego e nada poderia estar fora do lugar. Porém em mais um dia de festa, um queijinho muito fresco, olhou para uma goiabada ainda novinha e muito cheirosa que estava lá perto do tacho, e ficou olhando, olhando,  e ela o olhou também e ficou olhando, e sem querer seus corações frescos e doces começaram a bater mais rápido, deixando o queijo rosado e o doce branco, era o começo de mais uma bela estória de amor.
            Um quase impossível, porque no mundo dos encantos não existe impossível. Daquele dia em diante o queijo só olhava a goiabada que amava e a goiabada só olhava o queijo que clareava sua vida. O queijo para puxar assunto sempre inventava perguntas para conhecer sua amada:
            -Como é o seu doce?
            A goiabada toda sonhadora, filosofava em suas respostas...
-Sou doce como os longos passeios nas ruas de Paris.
E o queijo muito esperto dava um pulinho na estante em direção a goiabada.
-Hum! Você gosta de viajar. E aí ia conversa para uma noite toda.
-Queijo, como você se vê? Perguntou certo dia a goiabada.
-Eu sou redondo como o Big Ben em Londres e aqui do alto da estante posso ver tudo,  assim como o relógio pode ver boa parte de Londres.
Mais um pulinho e conversa para mais uma noite toda.
-Goiabada, você viu que temos muito em comum?
-Sim, você poderia ficar mais perto de mim. Respondeu a goiabada.
 E com esta afirmação de amor, o queijo desequilibrou e caiu em cima da goiabada, que susto! E o pior que já era a hora do encanto acabar, o queijo ficou ali, bem junto de sua amada, imóvel.
Quando Dona Benta entrou no galpão, que susto que ela levou! Apesar do susto, a curiosidade: queijo com goiabada!?
E por mera curiosidade, no mundo encantado diríamos que a força do amor coopera para o bem daqueles que se amam... Dona Benta amou e aprovou o gosto do novo doce. Seu Chico que toda vez que entrava no galpão afastava os queijos, teve que se render ao sabor do doce.
Como Seu Chico não queria os queijos perto dos doces e a junção dos dois era quase impossível, Dona Benta os chamou de Romeu e Julieta.
Seu Chico e Dona Benta pensaram em como seria fantástico os seus doces em feiras e mercados e se inscreverem em feiras e concursos.
Romeu e Julieta foram ganhando o mundo e estão em lua de mel até hoje... Paris, Rio de Janeiro, São Paulo e por ai a fora.

Autoria: Nanna Krishina

Princesa Azul




Era uma vez uma princesa de um reino muito lindo: o reino azul.
A princesa vivia feliz e contente, sempre sorridente, exceto por não ter um príncipe ao seu lado. Todos os dias a princesa orava a Deus: -Pai, meu pai me dá um príncipe lindo e que te ame acima de todas as coisas, que seja lindo e corajoso!
Os dias passavam e nada do príncipe chegar. Às vezes a princesa chorava, mas não deixava de acreditar. Sempre apareciam reis, plebeus, servos, até mesmo escravos, muito bons e bonitos, até mesmo ricos, mas nada de um príncipe da linhagem real que tocasse seu coração.
Ela sempre dizia que mesmo sendo príncipe, do que adiantaria se não tocasse seu coração. Claro que ela queria um príncipe lindo, mas além da beleza exterior ele tinha que ter algo a mais. Ele deveria saber quem era, onde iria chegar, como e com quem iria chegar. Teria que ter aquele charme especial para que não tivesse aquele gosto de estar beijando sapo. 
Um belo dia, na porta do castelo, enquanto a princesa conversava e discutia assuntos sérios, como organização do reino e cor do cabelo, aproximou-se dela um belo cavaleiro com pensamentos geniais, expondo ele suas ideias sobre o reino e seus administradores. Logo o coração da princesa saltou de alegria, gritando em voz silenciosa, que era aquele, o príncipe que ela esperava a vida toda.
Então eles conversaram, conversaram e resolveram conversar mais e mais. Entre conversas e conversas sobre reino, súditos, reis, rainhas, casa, castelo, viagens, filhos, casamentos, felicidade e amor, o coração da princesa já estava envolvido pelo príncipe. Foi então que decidiram perguntar à Deus se era a vontade Dele estarem para sempre juntos e fundarem o  Reino Larazul.
Mas como nem tudo na vida é um conto de fada e nem se vive para sempre feliz, a felicidade e oração dos dois tementes a Deus, levantaram a fúria do reino escuro (aquele que faz tudo para atrapalhar e que não gosta de pessoas felizes), a Bruxa Magrela Magricela, do nariz grande e cabelo de fogo, logo começou a arquitetar um plano do escuro para acabar com a felicidade da princesa.
Em um belo churrasco, numa noite de sábado, a bruxa enfeitiçou o príncipe, roubando dele a consciência e a santidade. Ele, doido, acabou beijando a bruxa e com o veneno dos lábios dela ficou louco, doido da cachola. Na manhã seguinte ainda doido, mas menos doido, procurou a princesa e contou a ela tudo o que havia acontecido, ela apaixonada, viu seu mundo desmoronar, seu castelo ruir assim como seu sonho.
O príncipe chorou e fez juras de amor sem pé e nem cabeça, a princesa com os olhos em lágrimas e coração partido disse que por enquanto não daria para estarem juntos.
A bruxa feliz da vida conseguiu acabar com a felicidade do casal. O príncipe ainda louco e com o veneno da porção mágica da bruxa Magrela Magricela, esqueceu-se do amor que antes sentia e da vida feliz que levaria. Agora ele estava solitário e infeliz, mas do lado da bruxa (não se esqueça Magrela Magricela), que enfeitiçado, consentiu em se casar com ela.  
A princesa sem entender o que tinha acontecido continuou no seu reino azul, mais azul do que nunca, porém agora também acinzentado e dolorido de um amor não vivido, da esperança que não passou de chuva de verão, que vem e sem paradeiro, como vento que passa, ora rápido, ora devagar, mas sempre vai embora. Com olhos sempre vermelhos, a princesa sempre chora a noite por não entender como alguém que a gente um dia amou tanto, vai embora assim, tão de repente, deixando a vida tão cinza.
Mas a vida ainda não chegou ao fim, quem sabe outro príncipe vai chegar e limpar o céu do coração da princesa ou até mesmo o príncipe bobo e enfeitiçado consiga romper o feitiço e se livrar da bruxa Magrela Magricela.
Em noite de chuva, a princesa chora, pensa em como ter o antídoto para o mal que a bruxa Magrela Magricela causou em sua vida, como se livrar daquele feitiço, como? E se ela fosse estudar farmácia? Ser uma farmacêutica demoraria tempo demais. E se ela estudasse plantas? Quem sabe na natureza acharia a cura.
Mas e se na verdade aquele príncipe fosse um sapo que era príncipe só de vez em quando? Meu Deus, que loucura é a vida, que devaneio é querer viver sem percalços, como se livrar das dores causadas por espinhos em meio às flores?  
A princesa ainda está estudando o caso do que fazer e enquanto isso chora a ausência de sonhos felizes e da cor azulada do seu céu sem nuvens de tristeza e solidão.
Certa vez contaram à princesa que a felicidade mora ao lado e que é a gente que não consegue vê-la. Tudo bem que a princesa é míope e sem os óculos de armação azul ela não enxerga muito bem, nem o que ta há um palmo na frente dela, ainda mais o que tá do lado. Mas de óculos fica tudo bem.
A princesa ficou a se perguntar: - Se a felicidade mora do lado, de que lado? É meu vizinho? Senta ao meu lado na escola? Está do meu lado no baile? Lado da frente ou lado de lado? Me ajuda! Felicidade mora ao lado, se isso é uma dica só piora as coisas.
Agora a princesa ficou com uma pulga na cabeça que não para de pular e dançando saltitante fica rindo muito, dando boas gargalhadas. Então deve ter um circo, é isso, um circo de pulgas na cabeça dela.
São ideias saltitantes que a incomodam, como se tivessem pés ou patinhas, ou melhor, molinhas nas patinhas.
Ideias! Pulguinhas! Molinhas! Patinhas!
E a felicidade mora do lado! Esquerdo ou direito?
A princesa perdida em tanta informação pensa: - Ele ainda não está do meu lado. Do meu lado direito tem um baixinho, careca, barrigudinho e sei que você não é assim, também não sei como você é, nada contra, mas... Da esquerda um alto, moreno claro, cabelo... credo, horrível! Sorriso torto, cara feia, Deus, que horror! Se você amor, for feio assim...
Mesmo não acreditando nessa história a princesa decidiu a passar a olhar do seu lado, quem sabe na festa da virada da lua eles estejam lado a lado e quando ela se virar, ele virará no mesmo instante e seus olhos se entrelaçarão como o brilho das estrelas em noite clara, ela o verá e ele a verá e andarão como em nuvens de algodão e dançarão entrelaçados em uma doce sintonia a noite toda. 
Não pude resistir, tive que vir aqui para contar como está o coração da princesinha e ele está doido, tudo doido. Não sabe nem em que pé e nem em que cabeça está e nem com quem está. Poderia estar com muitos, mas, não está com nenhum. Acredita?
A princesa está morrendo de medo de sofrer tudo de novo, de bruxas xexelentas entrarem de novo em seus contos de fadas, mesmo que agora ela saiba que não existem contos de fadas, que os contos não são tão encantados e que felizes para sempre somente existem em livros. Porém o coração da princesa é teimoso, como já se percebe, parece um cavalo ainda não domado com fúria selvagem.
Tenho que contar de alguns cavalheiros que o coração da princesa acha especiais, mas não consegue se decidir por causa do medo que ainda a impede de ir em frente. Não faça como a princesa, que chora até hoje, já não por um amor perdido, mas pela dor que ainda habita em seu coração, não dando espaço para um novo amor, um novo começo. 
A festa chegou, a festa da virada da lua! A princesa encheu seu coração de esperança, esperando que a lua trouxesse novos ares, novos ventos sobre seu coração e sobre sua alma.
Sabe quando a dor ainda é tão grande, tão grande que você não consegue parar de pensar ou começar de novo? Cada passo à frente é como se tocasse em um lugar no passado da princesa que a faz sofrer, recuar e sofrer mais ainda.
Hoje a rainha disse à princesa que ela estava parecendo trinta anos mais velha e ainda disse: -Troque a maquiagem agora, ela está te envelhecendo!
Como trocar a maquiagem se o que está velho está no coração!
Trocar a maquiagem é fácil, difícil são as cicatrizes de um coração ferido. Difícil é arrancar as lágrimas cristalizadas no coração. Para o rosto existem plásticas, para o corpo existem corpetes e purpurinas, para os pés, sapatos e saltos, para os cabelos... E para a alma? E para o coração?
É fácil ver de fora, o difícil é ver de dentro para fora, achar sentido, sorrir, brincar, rejuvenescer, cantarolar, andar sobre meios fios. Como é difícil sonhar se a única coisa que você percebe são pesadelos, música fúnebre e lágrimas cortantes.
Vestir-se de purpurinas, tecidos finos, cabelos perfeitos e diamantes nos dedos não são uma garantia de sorriso. Pena que o curvex transforma os cílios e não a alma.
O que a rainha não viu era que a princesa não precisava de outra maquiagem e sim de um colo, não de rainha, mas de mãe. Culpa da rainha? Não. A culpa era da princesa que não queria deixar transparecer a dor que ainda sentia do mundo, do seu mundo destruído.
Erga as mãos quem nunca sofreu por amor, que beijarei seus pés, deixarei o jornal do reino e serei eternamente súdito de sua boa sorte ou de suas boas escolhas.
Mudava a lua e nada mudou, a princesa apenas decidiu por escolhas diferentes. Sabe a festa que a princesa tanto esperou? Foi sususu... Ela estava deslumbrante, feliz ao máximo que seu coração permitia.
Na contagem regressiva, o coração da princesa ia pulando conforme ia se aproximando o “levantar da lua”, com o coração e a esperança ao máximo, começou a contagem regressiva...
Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois... UM!!!
“LUA NOVA!!!”
Embalados ao rits do momento, a festa do reino foi um sucesso. Opa! Um sususu... su-super sucesso!!!
Você já foi à um reino? Não? As melhores comidas em quantidades gigantescas, danças dos mais variados tipos, risos altíssimos e penetrantes, belos vestidos dos mais conceituados nomes da moda do reino, os mais belos príncipes, súditos, cavalheiros, as mais belas damas e donzelas, com seus vestidos impecáveis e suas formas perfeitas.
Olhando no meio da festa não consegui ver a princesa, sei que ela está aqui e claro, deve estar deslumbrante com seu impecável vestido azul. Procuremos por ela para entrevista-la e ouvi-la contar como está sua doce noite de lua nova.
No castelo tem um lago no lado sul, um lago cristalino com pedras brancas e azuis ao fundo, nas margens bancos e cisnes. Quando foi construído era para ser o lago dos amantes, dos apaixonados com seus infindáveis passeios. Foi ali perto que a princesa achou o sapo, que achou que seria seu príncipe. Que grande confusão que até hoje aquele sapo causou e ele que hoje está casado com a bruxa Magrela Magricela e morando lá no castelo escuro do outro lado da beleza.
O lago parece um espelho, de tão claro que suas águas são, ele é um lago de água doce com peixinhos coloridos e simpáticos. E é lá que nossa princesa estava, sentada, meio que deitada (daquele jeito quando você se joga no chão), ela estava ali, a olhar para o lago.
A única coisa que a princesa viu refletida, e que ela levou um susto, foi uma imagem com rugas, olhos baixos, uma boca caída. No desespero se levantou correndo, com soluços altos e sem entender o que vira, apenas chorava. Não entendia, se ela estava só, como poderia ver a imagem de uma senhora tão sofrida pelos anos vividos?
De olhos fechados foi se abaixando lentamente, sentou-se abrindo os olhos, olhando como se fosse para um espelho e o que viu era a mesma imagem que havia acabado de ver, uma senhora, com a coroa real em seus longos cabelos brancos e em seu colo caído e arfante estava a jóia da família real.
A princesa tentou tocar a imagem, mas ela se desfez e dentro de alguns segundos lá estava àquela senhora novamente refletida no lago. Lágrimas vieram aos olhos da princesa e ela levou os delicados dedos aos olhos com a incerteza de enxugar seus olhos já vermelhos.
E esse foi um dos momentos mais apavorantes que nossa princesa já teve, na imagem refletida no espelho d’água, também se levantou uma mão com a tentativa de enxugar os olhos da imagem, mas era uma mão cansada, enrugada pelo tempo, eram dedos já gastos pelo trabalho, mas naqueles dedos havia um anel, a aliança de sua avó que estava na família real havia séculos, ou melhor, havia milênios.
A princesa começou a soluçar. Soluços profundos e dolorosos, porém silenciosos. Aquele anel era dela, era o anel que ganhou de sua avó quando completou quinze anos.
A princesa ficou a contemplar sua imagem no lago por várias horas, passou a mão em seus cabelos, em seus olhos, em seu nariz, em sua boca e percebeu que a imagem era ela mesma, aquela imagem era como estava sua alma naquele momento.
O corpo ainda era jovem como uma donzela, mas sua alma estava tão velha, tão velhinha, tão fragilizada, não pelo tempo ou pela idade, mas pelo sofrimento, pela dor que ainda maltratava seu coração.    
E a princesa chorou...
Tanto e tão profundamente, seus soluços eram tão dolorosos, que eu chorei ao vê-la chorar...
Deixemos a princesa a sós com sua alma.

Autoria: Nanna Krishina

Ana Maria




Ele era tão doce, amigo, sincero, inteligente, encantador, tão tanta coisa boa que dava vontade de tê-lo, pensava Ana quando o olhava discretamente do alto da cabeça às pontas dos pés, passando pelo olhar, boca, nariz, coração. Ele era mais novo, não havia como negar e isso se colocava como barreira para Ana. Confundida, incerta, errante e pensativa.
Ao mexer o cabelo, tentando acertar os cachos que teimavam em tornear o rosto, tentava também se acertar, se recompor, se... Eram tantos “se”. E se ele a achasse velha demais? E se ela realmente fosse velha demais? E se fosse bom e ninguém aceitasse? E se... E se... E se... E se o tempo fosse bom e conservasse aquele momento? E se as dúvidas fossem apagadas? “E se” eram palavras tão duras e pouco sinceras que a dilaceravam.                          Ana ao olhá-lo de novo, repassando minuciosamente cada “e” e “se” presentes no ar, foi lentamente se afastando, como se um metro de distância pudesse afugentar cada sentimento, cada suspiro, cada angústia, cada incerteza.
Cada “e se” foi ganhando status de certeza e Ana foi se elaborando e elaborando que não fazia sentido. Ana o olhou pela última vez, e deu mais um passo, quase imperceptível, para trás, dando as costas para tudo que a deixava incerta e insegura e cheia de “e se”.
Paulo sem entender tocou no ombro de Ana, que fechou lentamente os olhos procurando em si, como um raio, algo em que pudesse se agarrar para ir embora, mas lembrou-se que nada até ali a estremecera daquele jeito. Lembrou do melhor sorriso, do mais claro, do mais sincero, lembrou que nunca o abraçara por medo de não querer soltá-lo, lembrou e foi lembrando. Sem querer uma lágrima revelou o que a tanto tempo estava guardado sem que Ana soubesse e tudo dentro dela se misturou outra vez, tudo estava ao chão, nada em que pudesse se agarrar.
Em suspiros, misto de desespero e agonia, ela seguiu deixando a mão de Paulo cair lentamente no vácuo de sua presença. Ana caminhou apressadamente pela rua mais próxima e desapareceu como quem nunca existiu. Seus pés apressados começaram a perder a firmeza, que antes convictos do caminho, a levaram até ali. E sem querer chorou profundamente, como criança ofendida.
Como o tempo era ingrato, porque ela, porque ele?
Ana suspirou, os seus pés nunca tiveram saído do lugar, seu corpo apenas havia estremecido com a aproximação de Paulo, sua mente em “dejà vu” a levara ao choro para perceber tudo.
 Num ato inesperado e não impensado se voltou ao olhar de Paulo, que nada compreendera e de súbito silenciou seu pensamento com seus lábios úmidos de lágrimas e desespero, nada demorado, mais que marcava o fim de tantos “e se” e selava o “e”.
Ana que beijou Paulo, que a abraçou sem entender e que ficaram ali parados sob o céu, que nada tinha de especial naquela noite. Não importava se tinha lua ou nuvens, naquele momento só importavam Paulo e Ana.


Autoria: Nanna Krishina

Meu avô, em um olhar azul




Lembro-me da sensação como se fosse agora, saí do trabalho e meu coração me angustiava muito, pensando como estava meu avô, será que toda aquela conversa de estado gravíssimo era verdade ou apenas impressão das pessoas desesperadas.
Eu precisava ver com os meus próprios olhos, eu precisava ouvir de um médico. Nunca que eu poderia aceitar apenas informações vagas de um dos maiores amores da minha vida. Não ia me contentar em apenas ouvir notícias vagas sobre ele.
            Saí do trabalho com destino direto, não tão direto, enrolei em alguns trabalhos com muito medo do que me esperava, passei o dia calculando o que falar e  como reagir, naquele momento só consegui enrolar mais um pouquinho. Quando finalmente saí do trabalho, parei uma condução e fui direto ao hospital.
Minha mente divagava, meu pensamento não pensava de modo coerente, eram estórias que minha própria mente desenhava em lúcidos momentos de desvarios, sorrisos em meio as lágrimas angustiadas para encontrar o chão.   
O hospital ficava dois pontos antes da faculdade e como eu queria que não fosse, não tinha como não encontrar o endereço do hospital, era ali o meu ponto para descer.
            Meu Deus me ajuda!
            Foi o pensamento quando os meus pés pisaram a soleira daquele hospital. O relógio marcava dezenove horas e quinze minutos. A recepção vazia me deu tempo para analisar a situação e  o ambiente. O cheiro característico, os corredores, uma sala de espera ao lado com cerca de dez pessoas...
- Boa noite, fui interrompida por um sujeito uniformizado e gentil: A Senhora precisa de alguma coisa?
- Meu avô está na UTI e preciso saber informações dele, não preciso vê-lo, quero  apenas notícias.
E segurando o choro, disse:
- Por favor, moço.
- Senhora, agora a recepção está fechada e não tem como passar informações sobre pacientes da UTI, mas daqui a dez minutos terá visitas e você poderá vê-lo.
- Não, não moço, não quero vê-lo, apenas quero saber notícias dele – me pareceu absurdo ver alguém que amo deitado em um leito sem conversar e se conversasse o que dizer, se eu nunca tinha entrado  em uma UTI e a minha primeira vez não seria sozinha, não é? O desespero reafirmou e perguntei: - Moço, lá vão me dar alguma informação sobre ele?
É só isso que eu quero... E mais uma lágrima alcançou o chão gelado, branco e limpo do hospital.
- Sim senhora, lá você poderá conversar com a médica.
Com o meu consentimento, eu iria até ao andar da UTI, mas não para vê-lo, apenas para ouvir da boca de um médico que todos estavam enganados e que meu avô estava bem.
Essa era a minha esperança.
Sentei-me na sala do lado, juntamente com aquelas 10 pessoas que estavam na mesma expectativa, que era de ouvir notícias melhores.
- Vamos. Aquele mesmo moço que me abordara na recepção nos chamou a subir.
Ao pé da escada fui indagada sobre qual paciente seria
- Francisco José da Silva – respondi e recebi o meu crachá – Visitante.
Hoje sonhei com um monte de gente morrendo, e meu pai morria! A tristeza toda voltou, meu Deus, como perder alguém que a gente ama é triste e dolorido, mesmo que alguém diga que pode te entender, somente entende alguém que já perdeu alguém que amava muito, mas muito mesmo.
Meus olhos ainda estão tristes, amo meu avô e nada, nem a morte me faz esquecê-lo.
            Meu Deus, como dói esta perda.
Eu havia ficado para trás e não sabia onde era a UTI, segui até o fim do corredor e eram apenas quartos, já chorando muito, pedi informação e me disseram para voltar e subir a rampa do lado esquerdo, nunca vi uma rampa tão longa e tão exaustiva.
Sozinha caminhando naquele corredor lembrei-me da vida, de situações, de como somos frágeis, de como não somos nada. E me lembrei também, que estar só é muito ruim,  estar só com coração e há momentos que você estará só, por mais amor que você receba, por mais pessoas que você ame, você vai ficar só.
E agora era o meu momento só, eu não queria estar ali, mordia os meus lábios, apertava minhas mãos, meus pés vacilavam, minha mente divagava, meus olhos já vermelhos tentavam conter as lágrimas que insistiam em cair ao chão, naquele momento o único som era da minha respiração descontrolada e dos meus passos vazios que pareciam querer fugir.
No final do corredor, algumas cadeiras e ninguém, eu continuava só. Numa porta de vidro que estava escrito com letras garrafais douradas Unidade de Tratamento Intensivo e uma campainha.
Não sabia se era para tocar a campainha ou não, mas ninguém aparecia e meus segundos eram horas.
Andava de um lado para o outro como se aquilo me acalmasse, meus olhos apenas iam se apertando e cada vez mais querendo segurar as lágrimas, mas que insistiam em encontrar o chão.
Toquei a campainha. Uma doutora apareceu e me perguntou o nome do paciente e me chamou para entrar. Minha voz desesperada rompeu a doçura e tranqüilidade que ela queria plantar no momento.
- Espere, não quero vê-lo. Ele é meu avô, apenas quero notícias, só notícias (minhas esperanças, minhas expectativas de milagres ainda fazia crer em algo muito especial).
- Certeza Senhora?
- Sim, somente notícias – engasgada com o choro reafirmei que eram apenas notícias que eu queria, somente boas notícias.
- Olha, o paciente Francisco José, está em uma situação gravíssima, teve um AVC e foi constatado um coágulo no cérebro, perdeu os movimentos e entrou em coma total hoje pela manhã.
- Como assim moça? O coma é induzido?
- Foi coma natural...
Meu mundo despencou, minhas esperanças desapareceram assim como meu mundo. O chão que eu pisava foi sumindo e minhas lágrimas pulavam com tanto desespero como eu jamais havia visto, meu coração não sabia se batia e ficou descompassado e minha face foi se embranquecendo, até que ficasse totalmente pálida.
- Eu quero vê-lo – Apenas pude dizer – Eu quero vê-lo.
- A senhora quer mesmo? Não vai passar mal lá dentro, tá?
- Hã hã, sussurrei.
Limpei minhas mãos com álcool e fui levada para onde ele estava.
Meu Deus, aquele era meu avô, deitado naquela cama com tantos aparelhos, aquela máquina com tubos no nariz dele. A sua boca estava com um tubo para alimentação, ela estava torta, seus olhos estavam fechados e baixos, seu olho esquerdo estava muito fundo.
Ali parada só pude dar vazão às lágrimas que jorravam de dentro do meu peito e saiam pelos meus olhos, como uma fonte incessante de dor. Naquele momento, sozinha, nada e ninguém poderia me consolar, nem as mais belas e profundas palavras poderiam amenizar a dor daquele momento.    
Passei as mãos pelo meu nariz, pelos meus olhos, como se isso fosse me fazer parar de chorar, para que eu pudesse respirar. Nada me fazia parar, apenas um choro tão profundo e dolorido como eu jamais tinha chorado antes.
Quantas vezes eu pensei que este dia ia chegar, quantas vezes já havia chorado pensando se um dia eu o perdesse, mas nada se comparava a dor daquele momento, nada que eu pudesse ter imaginado era tão doloroso, do que estar diante de uma das pessoas que eu mais amava. Doía-me muito, o sentimento de impotência de não poder fazer nada e ali somente eu chorava.
Chorei e chorei até ficar sem forças, minha mente não pensava em nada, minhas respiradas eram tão profundas que não me deixavam esboçar nenhuma reação além de chorar e apenas chorar.
O aparelho do coração apitando batimento por batimento.
De repente quando já não havia mais nada em mim, a não ser lágrimas, os olhos já inchados, tão inchados de tanta dor, o olho do vozinho se abriu somente o olho esquerdo, era como um milagre, por um momento, o meu mundo que estava tão cinza, dolorido, estava sendo iluminado, por um olhar azul, tão azul, tão claro, tão alvo, tão puro.
A luz daquele olhar foi penetrando dentro de mim, no meu coração e minhas lágrimas começaram a jorrar mais depressa, como cachoeiras no tempo de enchente. Ele me olhava e eu apenas me lembrava, porque na luz daquele olhar comecei a me lembrar de quando eu era criança e tínhamos as casas no mesmo quintal e eu o esperava depois do trabalho dele. Ele saia da prefeitura, onde trabalhava, comprava um saco de laranja e ia para casa, onde eu já estava no portão esperando ele chegar.
Eu me sentava ao seu lado e ele descascava laranjas e nós dois chupávamos quantas laranjas cabia no nosso estômago. Quem teria esta paciência para ficar descascando laranjas e mais laranjas para mim? Eu era incansável, aliás, insaciável para chupar laranjas. E no outro dia a mesma coisa, mais laranjas.
Lembrei também de quando ele deu o primeiro AVC, estávamos lá na casa dele e da vovó, de repente pensamos que ele estava brincando e ele começou a rolar na cama e chamar minha avó dizendo que estava passando mal, vovó foi lá quase brava porque era a hora do almoço e sua panela estava no fogo dourando o alho para o arroz que era sempre soltinho.
Vovô estava realmente passando mal, naquele dia o alho queimou, não teve arroz, apenas uma grande correria que com minha pouca idade eu não soube entender, apenas sentia em meu coração.
Correram para o hospital, crianças não entravam lá e eu fiquei sentada na soleira da casa, sem entender o que era aquilo tudo.    
Os dias se passaram e meu avô não chegava e ninguém sabia me contar o que estava se passando, a vovó chorando, papai com cara triste e semblante de homem da casa, não tinham explicações que me convenciam.
Quando vovô voltou, apenas ouvi conversas sobre amputar braços e pernas por não se movimentarem. Neste dia descobri que além de avó, minha avó era mulher e muita mulher, ela brigou com o médico e com o hospital e com todos e não deixou ninguém tocar no meu avô e o levou para casa numa cadeira de rodas.  E eu o vi depois de tanto tempo longe e sem notícias e ele me olhou como quem diz – Minha filha!
Tempos depois, após usar cadeira de rodas passou a andar arrastando um pouco, mas andou.
E ali naquele hospital, naquela UTI, aquele olhar era o mesmo daquele de 15 anos atrás, como quem dissesse: - Minha filha!  
Minhas lágrimas não paravam de jorrar, e nem minha mente de trazer lembranças de nós dois, minhas e do meu avô, ele puxou sua perna e tentou mexer sua mão, levei um susto, “ele estava em coma e sem movimentação”. Mas naquele momento aquelas palavras não tinham significado, ele estava ali e olhando para mim, era nosso momento e tudo que eu queria era levá-lo para casa.
Quando o vovô voltou para casa, há 15 anos, ele chegou sem mexer uma perna e um braço e a outra perna e o outro braço tinham movimentos lentos e sem coordenação, teve que fazer fisioterapia que não funcionava com rapidez. Vovô ficou bravo e disse que não ia fazer mais aquilo.
Aprendi desde cedo a ter garra e a virar mulher, gente grande nos momentos necessários, eu precisava fazer algo e não podia deixar o vovô ser assim para sempre.
Vovó sempre teve uma mania engraçada, ela juntava sacolas plásticas, sempre que ia ao supermercado, ao chegar em casa retirava todas as sacolas, dobrava e colocava detrás do armário e tinha muitas, eu pensava para quê mais sacolas?
Resolvi brincar com o vovô, ele não podia correr atrás da bola, então poderíamos brincar de vôlei sentado ou de goleiro. Peguei algumas sacolas da vovó, claro que escondido, senão ela ficaria muito brava comigo.
Eu colocava todas as sacolas dentro de um saquinho, amarrava e pronto, nossa bola estava pronta e aí eu jogava para o vovô e ele jogava para mim. E isto se tornou nossa brincadeira por muitos anos. Ora pegava a bola com a mão, ora chutava.
Um braço e uma perna retornaram a movimentação normal e a outra que quase não movimentava começou a movimentar, vovô voltou a falar com mais dicção, começou a andar escorando e depois aposentou a cadeira de rodas e depois a muleta, andava arrastando uma perna, mais já era um grande milagre para a medicina.
Vovô que ia ter as pernas amputadas agora andava, esse era meu avô. Essa era minha avó, que enfrentou os médicos, que amava o esposo. Os dois fizeram sessenta anos de casados e eu diante do vovô deitado ali no hospital, me olhando com aquele olhar azul, talvez querendo me dizer algo que não soube ouvir, mas sei que meu coração ouviu.
 Os seus olhos foram fechando devagarzinho, até se fecharem completamente, sua respiração parou e meu mundo desabou, minhas lágrimas secaram e não pude ouvir mais nenhum som, nenhum movimento, nenhuma reação. 

Autoria: Nanna Krishina