quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Meu avô, em um olhar azul




Lembro-me da sensação como se fosse agora, saí do trabalho e meu coração me angustiava muito, pensando como estava meu avô, será que toda aquela conversa de estado gravíssimo era verdade ou apenas impressão das pessoas desesperadas.
Eu precisava ver com os meus próprios olhos, eu precisava ouvir de um médico. Nunca que eu poderia aceitar apenas informações vagas de um dos maiores amores da minha vida. Não ia me contentar em apenas ouvir notícias vagas sobre ele.
            Saí do trabalho com destino direto, não tão direto, enrolei em alguns trabalhos com muito medo do que me esperava, passei o dia calculando o que falar e  como reagir, naquele momento só consegui enrolar mais um pouquinho. Quando finalmente saí do trabalho, parei uma condução e fui direto ao hospital.
Minha mente divagava, meu pensamento não pensava de modo coerente, eram estórias que minha própria mente desenhava em lúcidos momentos de desvarios, sorrisos em meio as lágrimas angustiadas para encontrar o chão.   
O hospital ficava dois pontos antes da faculdade e como eu queria que não fosse, não tinha como não encontrar o endereço do hospital, era ali o meu ponto para descer.
            Meu Deus me ajuda!
            Foi o pensamento quando os meus pés pisaram a soleira daquele hospital. O relógio marcava dezenove horas e quinze minutos. A recepção vazia me deu tempo para analisar a situação e  o ambiente. O cheiro característico, os corredores, uma sala de espera ao lado com cerca de dez pessoas...
- Boa noite, fui interrompida por um sujeito uniformizado e gentil: A Senhora precisa de alguma coisa?
- Meu avô está na UTI e preciso saber informações dele, não preciso vê-lo, quero  apenas notícias.
E segurando o choro, disse:
- Por favor, moço.
- Senhora, agora a recepção está fechada e não tem como passar informações sobre pacientes da UTI, mas daqui a dez minutos terá visitas e você poderá vê-lo.
- Não, não moço, não quero vê-lo, apenas quero saber notícias dele – me pareceu absurdo ver alguém que amo deitado em um leito sem conversar e se conversasse o que dizer, se eu nunca tinha entrado  em uma UTI e a minha primeira vez não seria sozinha, não é? O desespero reafirmou e perguntei: - Moço, lá vão me dar alguma informação sobre ele?
É só isso que eu quero... E mais uma lágrima alcançou o chão gelado, branco e limpo do hospital.
- Sim senhora, lá você poderá conversar com a médica.
Com o meu consentimento, eu iria até ao andar da UTI, mas não para vê-lo, apenas para ouvir da boca de um médico que todos estavam enganados e que meu avô estava bem.
Essa era a minha esperança.
Sentei-me na sala do lado, juntamente com aquelas 10 pessoas que estavam na mesma expectativa, que era de ouvir notícias melhores.
- Vamos. Aquele mesmo moço que me abordara na recepção nos chamou a subir.
Ao pé da escada fui indagada sobre qual paciente seria
- Francisco José da Silva – respondi e recebi o meu crachá – Visitante.
Hoje sonhei com um monte de gente morrendo, e meu pai morria! A tristeza toda voltou, meu Deus, como perder alguém que a gente ama é triste e dolorido, mesmo que alguém diga que pode te entender, somente entende alguém que já perdeu alguém que amava muito, mas muito mesmo.
Meus olhos ainda estão tristes, amo meu avô e nada, nem a morte me faz esquecê-lo.
            Meu Deus, como dói esta perda.
Eu havia ficado para trás e não sabia onde era a UTI, segui até o fim do corredor e eram apenas quartos, já chorando muito, pedi informação e me disseram para voltar e subir a rampa do lado esquerdo, nunca vi uma rampa tão longa e tão exaustiva.
Sozinha caminhando naquele corredor lembrei-me da vida, de situações, de como somos frágeis, de como não somos nada. E me lembrei também, que estar só é muito ruim,  estar só com coração e há momentos que você estará só, por mais amor que você receba, por mais pessoas que você ame, você vai ficar só.
E agora era o meu momento só, eu não queria estar ali, mordia os meus lábios, apertava minhas mãos, meus pés vacilavam, minha mente divagava, meus olhos já vermelhos tentavam conter as lágrimas que insistiam em cair ao chão, naquele momento o único som era da minha respiração descontrolada e dos meus passos vazios que pareciam querer fugir.
No final do corredor, algumas cadeiras e ninguém, eu continuava só. Numa porta de vidro que estava escrito com letras garrafais douradas Unidade de Tratamento Intensivo e uma campainha.
Não sabia se era para tocar a campainha ou não, mas ninguém aparecia e meus segundos eram horas.
Andava de um lado para o outro como se aquilo me acalmasse, meus olhos apenas iam se apertando e cada vez mais querendo segurar as lágrimas, mas que insistiam em encontrar o chão.
Toquei a campainha. Uma doutora apareceu e me perguntou o nome do paciente e me chamou para entrar. Minha voz desesperada rompeu a doçura e tranqüilidade que ela queria plantar no momento.
- Espere, não quero vê-lo. Ele é meu avô, apenas quero notícias, só notícias (minhas esperanças, minhas expectativas de milagres ainda fazia crer em algo muito especial).
- Certeza Senhora?
- Sim, somente notícias – engasgada com o choro reafirmei que eram apenas notícias que eu queria, somente boas notícias.
- Olha, o paciente Francisco José, está em uma situação gravíssima, teve um AVC e foi constatado um coágulo no cérebro, perdeu os movimentos e entrou em coma total hoje pela manhã.
- Como assim moça? O coma é induzido?
- Foi coma natural...
Meu mundo despencou, minhas esperanças desapareceram assim como meu mundo. O chão que eu pisava foi sumindo e minhas lágrimas pulavam com tanto desespero como eu jamais havia visto, meu coração não sabia se batia e ficou descompassado e minha face foi se embranquecendo, até que ficasse totalmente pálida.
- Eu quero vê-lo – Apenas pude dizer – Eu quero vê-lo.
- A senhora quer mesmo? Não vai passar mal lá dentro, tá?
- Hã hã, sussurrei.
Limpei minhas mãos com álcool e fui levada para onde ele estava.
Meu Deus, aquele era meu avô, deitado naquela cama com tantos aparelhos, aquela máquina com tubos no nariz dele. A sua boca estava com um tubo para alimentação, ela estava torta, seus olhos estavam fechados e baixos, seu olho esquerdo estava muito fundo.
Ali parada só pude dar vazão às lágrimas que jorravam de dentro do meu peito e saiam pelos meus olhos, como uma fonte incessante de dor. Naquele momento, sozinha, nada e ninguém poderia me consolar, nem as mais belas e profundas palavras poderiam amenizar a dor daquele momento.    
Passei as mãos pelo meu nariz, pelos meus olhos, como se isso fosse me fazer parar de chorar, para que eu pudesse respirar. Nada me fazia parar, apenas um choro tão profundo e dolorido como eu jamais tinha chorado antes.
Quantas vezes eu pensei que este dia ia chegar, quantas vezes já havia chorado pensando se um dia eu o perdesse, mas nada se comparava a dor daquele momento, nada que eu pudesse ter imaginado era tão doloroso, do que estar diante de uma das pessoas que eu mais amava. Doía-me muito, o sentimento de impotência de não poder fazer nada e ali somente eu chorava.
Chorei e chorei até ficar sem forças, minha mente não pensava em nada, minhas respiradas eram tão profundas que não me deixavam esboçar nenhuma reação além de chorar e apenas chorar.
O aparelho do coração apitando batimento por batimento.
De repente quando já não havia mais nada em mim, a não ser lágrimas, os olhos já inchados, tão inchados de tanta dor, o olho do vozinho se abriu somente o olho esquerdo, era como um milagre, por um momento, o meu mundo que estava tão cinza, dolorido, estava sendo iluminado, por um olhar azul, tão azul, tão claro, tão alvo, tão puro.
A luz daquele olhar foi penetrando dentro de mim, no meu coração e minhas lágrimas começaram a jorrar mais depressa, como cachoeiras no tempo de enchente. Ele me olhava e eu apenas me lembrava, porque na luz daquele olhar comecei a me lembrar de quando eu era criança e tínhamos as casas no mesmo quintal e eu o esperava depois do trabalho dele. Ele saia da prefeitura, onde trabalhava, comprava um saco de laranja e ia para casa, onde eu já estava no portão esperando ele chegar.
Eu me sentava ao seu lado e ele descascava laranjas e nós dois chupávamos quantas laranjas cabia no nosso estômago. Quem teria esta paciência para ficar descascando laranjas e mais laranjas para mim? Eu era incansável, aliás, insaciável para chupar laranjas. E no outro dia a mesma coisa, mais laranjas.
Lembrei também de quando ele deu o primeiro AVC, estávamos lá na casa dele e da vovó, de repente pensamos que ele estava brincando e ele começou a rolar na cama e chamar minha avó dizendo que estava passando mal, vovó foi lá quase brava porque era a hora do almoço e sua panela estava no fogo dourando o alho para o arroz que era sempre soltinho.
Vovô estava realmente passando mal, naquele dia o alho queimou, não teve arroz, apenas uma grande correria que com minha pouca idade eu não soube entender, apenas sentia em meu coração.
Correram para o hospital, crianças não entravam lá e eu fiquei sentada na soleira da casa, sem entender o que era aquilo tudo.    
Os dias se passaram e meu avô não chegava e ninguém sabia me contar o que estava se passando, a vovó chorando, papai com cara triste e semblante de homem da casa, não tinham explicações que me convenciam.
Quando vovô voltou, apenas ouvi conversas sobre amputar braços e pernas por não se movimentarem. Neste dia descobri que além de avó, minha avó era mulher e muita mulher, ela brigou com o médico e com o hospital e com todos e não deixou ninguém tocar no meu avô e o levou para casa numa cadeira de rodas.  E eu o vi depois de tanto tempo longe e sem notícias e ele me olhou como quem diz – Minha filha!
Tempos depois, após usar cadeira de rodas passou a andar arrastando um pouco, mas andou.
E ali naquele hospital, naquela UTI, aquele olhar era o mesmo daquele de 15 anos atrás, como quem dissesse: - Minha filha!  
Minhas lágrimas não paravam de jorrar, e nem minha mente de trazer lembranças de nós dois, minhas e do meu avô, ele puxou sua perna e tentou mexer sua mão, levei um susto, “ele estava em coma e sem movimentação”. Mas naquele momento aquelas palavras não tinham significado, ele estava ali e olhando para mim, era nosso momento e tudo que eu queria era levá-lo para casa.
Quando o vovô voltou para casa, há 15 anos, ele chegou sem mexer uma perna e um braço e a outra perna e o outro braço tinham movimentos lentos e sem coordenação, teve que fazer fisioterapia que não funcionava com rapidez. Vovô ficou bravo e disse que não ia fazer mais aquilo.
Aprendi desde cedo a ter garra e a virar mulher, gente grande nos momentos necessários, eu precisava fazer algo e não podia deixar o vovô ser assim para sempre.
Vovó sempre teve uma mania engraçada, ela juntava sacolas plásticas, sempre que ia ao supermercado, ao chegar em casa retirava todas as sacolas, dobrava e colocava detrás do armário e tinha muitas, eu pensava para quê mais sacolas?
Resolvi brincar com o vovô, ele não podia correr atrás da bola, então poderíamos brincar de vôlei sentado ou de goleiro. Peguei algumas sacolas da vovó, claro que escondido, senão ela ficaria muito brava comigo.
Eu colocava todas as sacolas dentro de um saquinho, amarrava e pronto, nossa bola estava pronta e aí eu jogava para o vovô e ele jogava para mim. E isto se tornou nossa brincadeira por muitos anos. Ora pegava a bola com a mão, ora chutava.
Um braço e uma perna retornaram a movimentação normal e a outra que quase não movimentava começou a movimentar, vovô voltou a falar com mais dicção, começou a andar escorando e depois aposentou a cadeira de rodas e depois a muleta, andava arrastando uma perna, mais já era um grande milagre para a medicina.
Vovô que ia ter as pernas amputadas agora andava, esse era meu avô. Essa era minha avó, que enfrentou os médicos, que amava o esposo. Os dois fizeram sessenta anos de casados e eu diante do vovô deitado ali no hospital, me olhando com aquele olhar azul, talvez querendo me dizer algo que não soube ouvir, mas sei que meu coração ouviu.
 Os seus olhos foram fechando devagarzinho, até se fecharem completamente, sua respiração parou e meu mundo desabou, minhas lágrimas secaram e não pude ouvir mais nenhum som, nenhum movimento, nenhuma reação. 

Autoria: Nanna Krishina

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